sexta-feira, abril 27, 2007

i miss you.


Vivera ali a sua infância, pelo meio daqueles muros pálidos que feriam a vista nos dias de calor constante. Parecia que tinha sido ontem que, carro abastecido e de panela rota, arrancara a toda a velocidade até ver aquela brancura desaparecer no espelho retrovisor, e se fizera à auto-estrada da vida, em busca do seu lugar ao sol. Mas debaixo de um sol que não queimasse tanto, como ali, e não tolhesse os raros movimentos de lavoura, de tentativa de fazer algo produtivo.
A sua partida fora cruel, decerto. Mas não a imaginava de outra forma. Não se via nem nunca se tinha visto amarrada àquele sítio, lavrando a terra entrapada em negro, reclamando da chuva e do sol e vivendo sob os desígnios da natureza, por entre moscas e melgas. Como a mãe. Enquanto ela tinha fugido estrada fora e cheirado o sucesso noutras paragens, a mãe ficara ali, estática no espaço e no tempo, na solidão das horas. Até àquele dia.
Pensara, no longo caminho pela planície, que ao ver a sua mãe descer à terra, se sentiria mal por tê-la abandonado na sua casa e na sua aldeia, no meio do isolamento da pradaria sem fim. Mas agora que via o caixão descendo pelo meio do choro das carpideiras, sentia que tomara a decisão certa. Não que a mãe não lhe fizesse falta. Nada disso. Nem sequer a visitara muitas vezes depois da sua fuga intempestiva e rebelde. Mas bastava-lhe sabê-la presente, ali, naquele fim de mundo. Não lhe importava que estivesse longe como tudo. A certeza de a saber lá, esperando o constante regresso da filha malvada, sempre com os pozinhos do café e do leite à mão para as eventualidades da chegada da fugidia, que nunca soubera como fazer-lhe companhia. Saber que se precisasse de um ombro conselheiro e de um afago terno bastava-lhe fazer-se à estrada e num ápice a mãe faria com que tudo ficasse melhor
As pessoas da aldeia que tinham comparecido ao funeral olhavam-na de lado, como uma estranha. Sabia que elas não lhe perdoavam o abandono prematuro da mãe. Mas ela sentia que a mãe lhe perdoava. Que desesperara à sua espera, na sua cadeira de baloiço, e chorara madrugada adentro, mas que percebera que a sua índole era demasiado explosiva para ser encerrada naquela terra sem futuro, apenas com um passado de resistência às adversidades campestres, sem mais ambição que não fosse colher da terra o sustento e queimar ao sol a pele crestada do trabalho.
As pessoas começavam a dispersar. Por isso, sentiu que estava na hora de abandonar aquele sítio. Solitária, palmilhou o caminho de volta lentamente, medindo cada passo que dava na calçada. Olhava em volta. Já nada a prendia ali. Sem a mãe, aquela terra perdia o seu significado, era mais um nome perdido no mapa, povoada de velhos destroços. Estava na hora de seguir em frente.
Entrou no seu carro, agora topo de gama e novinho em folha, e avançou em direcção à saída da aldeia. Acelerou a fundo, mas depois abrandou bruscamente, e olhou o espelho retrovisor. Na bruma que saltava do alcatrão fervilhante, uma mulher de negro abanava um lenço, paz estampada na cara e meio sorriso. Ela fechou os olhos, abriu o vidro e respirou fundo e pela última vez o aroma do seu porto de abrigo. Cheirou-lhe a terra, à fruta madura que apanhava na casa do vizinho, ao perfume da mãe, às quedas que deu da única árvore do seu terreno, à sua casa doentiamente limpa, aos cozinhados da mãe, ao primeiro beijo com o rapaz mais bonito da aldeia que tinha três dentes tortos, à primeira ida à escola, ao seu primeiro cigarro, ao verão tórrido, ao Inverno polar. A sua infância num só suspiro.
Depois acelerou novamente, e pensou ouvir o som da panela rota, enquanto os seus cabelos esvoaçavam como outrora, carregados de sonhos e ilusões.

1 comentário:

Fátima disse...

vivi este. :) aldeias.